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quinta-feira, 5 de abril de 2012

Saudade do jejum

Mais uma crônica de João Ubaldo Ribeiro que vale a pena ler até o fim.

Saudade do Jejum

Hoje não tem mais nem Semana Santa como antigamente.
Principalmente as Semanas Santas que passei, quando era menino
em Aracaju. Isto já faz mais tempo do que eu gostaria de admitir,
mas, de qualquer forma, não faz tanto tempo assim. Faz o suficiente,
é bem verdade, para eu ficar escandalizadíssimo com as Sextas-
Feiras Santas de hoje em dia. Não está direito.
Desde o começo da Semana Santa, a gente escutava umas
aulas de catecismo tristíssimas, tão tristes que às vezes a professora
chorava e todo mundo chorava, de maneira que, na Sexta-Feira
Santa, o clima já estava preparado. Não precisava nem da missa,
com o padre todo de roxo e falando uns latins que a gente estava
sentindo que era coisa tristíssima, porque todo mundo já amanhecia
triste. Se alguém ligasse o rádio (estava na cara que era meio pecado,
mas às vezes a gente facilitava e ligava — tudo tentação do Cão, é
claro), só ia ouvir música clássica. Não precisava ser sacra: podia ser
a Heróica, podia ser até a abertura de Madame Butterfly. Mas tinha
de ser clássica, coisa séria, para mostrar respeito, e então às vezes a
gente escutava aquela música e ficava mais triste ainda. Também
não se podia falar alto, dar muita risada e sair correndo por aí, como
se fosse um dia normal. Futebol, nem pensar, as pernas podiam ir
mirrando, mirrando, até Deus castigar de vez e o sujeito passar o
resto da vida de muletas.
O que salvava a Sexta-Feira Santa, naturalmente, era a
perspectiva do Sábado de Aleluia. Algumas famílias davam até
presentes às crianças. A minha não dava, mas, já na sexta-feira de
noite, a gente podia sentar no sofá e arriscar umas risadinhas,
porque, quando a mãe reclamava das risadas, a gente falava que era
porque amanhã Cristo ia ressuscitar e aí a mãe achava justo. Aliás,
geralmente achava tão justo que começava uma risadaria sem fim,
todo mundo se torcendo de rir uns dez minutos. Era bom.
No sábado, a molecada toda se reunia junto aos postes de ferro
para começar a fazer barulho assim que o sino da igreja de São José
tocasse. Tocava mais ou menos às dez horas e aí a gente batia com
pedras e martelos nos postes, até que toda Aracaju era uma aleluia
só. Mais tarde, deixavam as crianças ficar acordadas noite adentro,
para assistir à queimação de Judas, precedida da leitura de um
testamento em versos, em que alguém sempre herdava um penico
enferrujado e todo mundo achava engraçadíssimo. Uma vez eu
herdei esse penico e, pensando bem, meu patrimônio não se ampliou
muito além disso até hoje.
A Semana Santa também se caracterizava pelo rigoroso jejum
que a gente observava. Comer carne, principalmente a partir da
quarta-feira, o mínimo que dava era a pessoa ficar a noite em claro,
achando que ia morrer estuporada. Pelo menos pereba dava, era fato
conhecido. Então, já na segunda-feira, minha mãe não facilitava, não
existe nada pior do que menino perebento. Ela anunciava, na hora
do almoço:
— Esta semana, jejum completo!
Era um grande sacrifício. Com a família toda reunida em volta
de uma mesa gigantesca, a gente enfrentava: uma moquequinha de
curimã; um escaldado de curimã, para os meninos enjoados, que não
comiam moqueca; uma salada de bacalhau, para meu avô
português, mas todo mundo metia a mão; curimã frita, para os
meninos ainda mais enjoados, que não comiam nem moqueca nem
escaldado; um vermelho assado, que minha mãe não deixava de
fazer, senão meu pai reclamava e dizia que era muito, muito infeliz, e
então minha mãe enchia meu pai de vermelho assado; feijão de leite;
feijão normal, para os meninos enjoados e meu pai, que não
comíamos feijão de leite; um ensopadinho de camarão, para o caso
de chegar alguém e a gente poder passar vergonha; arroz, chuchu,
maxixe, abóbora, tomate, macaxeira, fruta-pão, inhame, pão (para
meu avô português), macarrão, manga, abacaxi, caju, melancia,
mamão, pitomba, gravatá, marmelada, goiabada, compota de caju,
doce de leite, baba-de-moça, biscoito rico, queijo de bode, requeijão,
manteiga de garrafa, bolachão, suspiros e sequilhos, além de mais
umas vinte coisas, que a memória me falha nestas horas. Na
verdade, o jejum lá de casa era conhecido e vinham amigos e
parentes de longe, só para jejuar com a gente. Sempre foram
recebidos, não davam trabalho algum, bastava acrescentar uns cinco
pratos ao cardápio e reforçar o tira-gosto, que começava a sair às dez
horas da manhã de terça-feira e só parava domingo de noite, pelo
menos que eu saiba.
Hoje, não. Hoje ninguém mais jejua, é ou não é?
Principalmente aqui no Nordeste. Deve ser o desgaste do espírito
religioso de nosso povo. Aqui no Nordeste se passa muita fome, mas
nunca que é a mesma coisa.
                                                                                              (19-04-81)

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Uma Boa Semana Santa a todos, com umas cocadinhas pra acompanhar... 


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6 comentários:

  1. Querida amiga,
    Páscoa…
    É ser capaz de mudar,
    partilhar a vida na esperança,
    lutar para vencer toda sorte de sofrimento.
    É ajudar mais gente a ser gente,
    viver em constante libertação,
    crer na vida que vence a morte.
    É dizer sim ao amor e à vida
    investir na fraternidade,
    lutar por um mundo melhor,
    vivenciar a solidariedade.
    É renascimento, é recomeço,
    é uma nova chance para melhorarmos as coisas que não gostamos em nós,
    Para sermos mais felizes por conhecermos a nós mesmos mais um pouquinho.
    É vermos que hoje… somos melhores do que fomos ontem.
    Desejo a você e a todos os seus uma Feliz Páscoa, cheia de paz, amor e muita saúde!

    Beijocas sabor de chocolate!!!

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  2. Ah...tudo isso fala direto ao coração!
    A época da páscoa nos convida à reflexão,o que nos faz muito bem para a alma.
    Desejo que a alegria esteja com você e todos que você ama,feliz páscoa.

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  3. Amiga Estela venho desejar-lhe uma Páscoa muito feliz, plena de alegria, harmonia e paz.
    Beijinhos
    Maria

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  4. Desejo que o verdadeiro significado da páscoa ecoe em nossos corações por hoje e sempre!
    Uma semana abençoada para ti!
    Bjs

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  5. Estela ........ Feliz Páscoa ...


    Beijooooooooooo

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  6. Belíssima crônica e verdadeira. Imagina que nesta última Sexta-Feira Santa, vi muita gente embriagada...

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